Competir ou compartilhar?, por penélope martins

Sinceramente, eu estranho como tratamos nossas crianças. Passamos os primeiros anos fazendo com que elas se socializem, dizemos para elas sorrirem e fazerem gracejos, elogiamos quando saem correndo para abraçar os amiguinhos da escola, quando partilham o lanchinho com outras crianças no parque. Depois, algo bruscamente se quebra. Começa a saga da escolaridade junto com a gama de observações dispensáveis dessas pessoas adultas que supostamente deveriam ser mais maduras para se considerarem responsáveis sobre seus filhos; ah, como são bons nisso ou naquilo, esses meninos, ah, como minhas filhas são lindas e mais altas e têm inteligência peculiar, e assim por diante.

Um descaso com o equilíbrio mental das crianças, eu diria. Uma fúria por incentivar a competição desde muito cedo. “Corra, não vê que sua amiga já chegou lá?”, frases que passam longe de motivar, ao contrário, são alavancas para um individualismo que consumirá as potências humanizadoras no futuro.

Dentro desse caldo, obviamente, é preciso identificar quais os tipos de adultos na  missão de criar crianças, e existem vários. Se mais conservador, a competição é questão de sobrevivência, enquanto para o progressista libertário, competição se justifica com auto-estima. Nem um, nem outro. Sinto muito.

Quando será que as crianças poderão ficar livres para seguir compartilhando lanches, dúvidas e sentimentos?

No modelo atual, nunca.

O tempo todo somos motivados a disputar, a desejar o que não precisamos só para manter certa arrogância social, a valorizar as conquistas efêmeras com um pretenso mérito que desconsidera a oportunidade que muitos não tiveram. O tempo todo somos consumidos pela ganância de aparecer, e em tempos de rede social, há até uma ilusão de “patente” sobre o que se é.

Recentemente eu tive que ouvir, de uma pessoa que trabalha com arte e cultura, que ela tinha sido inquirida por outra artista por se trajar de maneira semelhante a sua. Tristeza que me abateu. Falta tanta ação provocativa de arte e cultura que, mesmo fôssemos atuantes em frentes idênticas, ainda seria pouco para a grandiosa tarefa de sensibilizar o mundo. No mais, essa ideia de exclusividade é tão equivocada quanto a ganância de competir, competir, competir para ser eu mesma? Cada um é o ser particular que é, mas ainda assim somos bilhões e é bem capaz que tenham pelo menos uma centena de gêmeos espalhados por aí. Além do mais, que bom inspirarmos uns aos outros, não?

Lembro-me do poema O capitalismo, de Ana Perez Cañamares, que entre tantos versos pertinentes, diz, respondendo ao próprio inferno que é o mecanismo capitalista quando ele aponta que ela deve se sentir melhor do que as outras: “y yo callo que yo no quiero ser artista / si eso va a convertirme en diferente / porque ya me siento lo bastante sola /
y no quiero competir en más carreras”.

Quando escrevi Minha vida não é cor-de-rosa tentei resgatar meu sentimento na infância e na adolescência sobre minhas relações com outras meninas. Eu sentia tanta necessidade de ter amigas como se fossem irmãs. Eu tinha um irmão, na época. Só 13 anos depois, minha mãe ficou grávida de outra menina, e essa eu tentei proteger como não pude a mim mesma.

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Minha vida não é cor-de-rosa

Desculpe lá, isso era para dizer que estamos prontos para morrer de tanto competir. QUE TAL INVERTER? Alguém ganha um prêmio, que ótimo existirem prêmios que motivem a cena. Outro se deu bem em concurso, espero que faça bom uso da carreira. Há quem esteja absurdamente feliz nas fotos, e isso é muito melhor do que lidar com gente infeliz no mundo. O fulano arranjou emprego? Opa, que ótimo alguma movimentação positiva na economia. E aquele que levou a melhor com um projeto aprovado em lei de incentivo, hein, será que me dá umas dicas para que eu me inscreva na próxima?

A vida não é mar de rosas, já bastam as dificuldades. Mais fácil ficaria se pudessemos nos perdoar desse lixo todo. E sim, precisamos amar de fato nossas crianças.

Se hoje é Dia Nacional do Livro, espero que sirva para boas histórias. Talvez alguma que fale de cooperação, de amizade. Ou, quem sabe, alguma em que me deixe chegar atrasada, pelos menos um bocadinho, sem culpa…Nenhuma descrição de foto disponível.

 

 

 

 

 

 

 

* Penélope Martins é escritora e narradora de histórias, gosta muito de gente e, por isso, cuida com carinho do Blog Toda Hora Tem História.

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